quarta-feira, 9 de maio de 2012

Conto: O Coveiro do Universo


      Aquele rapaz acordou, após muito tempo. Por longa data as trevas tem sido o seu local de repouso, mas enfim ele despertou, só desconhece o motivo.  Tudo que ele amava lhe foi tirado, e ele sabe que as melhores coisas jamais retornam.  Tudo que aquele rapaz procura agora é seu exílio, mas isto lhe foi negado, até que ele regresse ao inicio de tudo, e descubra qual o seu erro, a fim de não cometer os mesmos novamente.
            Enfim, após uma breve resistência, ele decide abrir a porta de seu quarto. Nem o seu aguçado instinto de auto-preservação pôde impedir sua rápida investida contra o destino. Enfim, a porta se abre, e a luz invade o ambiente, ferindo seus olhos, há muito desacostumados com a claridade.
            Ele deixou os olhos fechados até que os mesmos estivessem prontos, e ficou sentindo a brisa da manhã no rosto, como se aquela brisa pudesse lhe dar forças para enfrentar o que há por vir. Enfim, foi para fora. Morava no topo de um morro, em frente a um grande vale florestado, cujas copas impediam o sol de clarear o caminho. Ele tinha vagas lembranças do lugar, mas percebeu que o céu já não era tão azul como outrora, e o horizonte assumiu um tom amarelado.
           Desceu a escadaria. Seu belo jardim que fora o refúgio de sua infância agora não passava de um canteiro de ervas daninhas. A fonte que decorava sua fachada secara. Mas ele não se importou. Haveria de consertar tudo.
           Atravessou o bosque e abriu o portão. Não lembrava que o seu muro era tão extenso. Quais motivos teriam o levado a levantá-lo? Logo corrigira isso também. Dirigiu-se a primeira estrada que viu e andou alguns quilômetros. Viu várias residências, algumas simples, outras suntuosas. Vira vários jardins, alguns até mesmo chegavam a ser belos, mas apenas isso. Não viu criança alguma brincar ao redor das fontes, nenhuma dama a colher flores e nem mesmo uma alma viva a vagar. Era apenas ele e a estrada, a solidão como companhia e vento a lhe dizer aonde ir.
           Provavelmente seria apenas meio-dia, mas a rua estava vazia e fria como uma noite de inverno. Viu uma pequena praça e parou para descansar, embora não estivesse cansado. Finalmente, vira um sinal de vida. Uma criança brincava com um cão perto de algumas árvores. A uma bola xadrez caíra perto de seus pés, e devolveu à criança, que lhe retribuiu com um sorriso, o primeiro que vira em tantos anos. E assim, um pequeno companheirismo floresceu até o entardecer, quando a criança entrara em sua casa e um grande grupo de pessoas começara a circular.
           Mas estavam todos com pressa, com passos hostis e olhares desconfiados e com suas malas e bolsas, subiam a escadas. Aquele rapaz se perguntava, por que jardins tão belos eram ignorados? Por que ninguém aproveitava o pôr-do-sol, mesmo tendo varandas tão belas?  Talvez houvesse algum grande evento por vir. Mas as horas passaram e não via nada, algumas risadas vazias talvez, vindo de dentro das casas, ou grupos de amigos embriagados se amontoando pelas esquinas. Mas a criança da bola xadrez ainda o olhava pela janela. Por que, de tantas pessoas, apenas aquela criança havia reparado na sua presença?
          Não suportando sua curiosidade, solidão ou apenas tédio, se dirigiu a janela de uma das casas e olhou. Via um homem sentado na poltrona sozinho, de frente para uma tela. Aparentemente, conversava com alguém que estava na cozinha. Mas por que não saia da frente daquela tela, que parecia entediá-lo e não se juntava com a pessoa da cozinha para conversar de modo correto? De um dos cantos da sala a criança da bola xadrez brincava com cavalos de madeira. Por algum motivo, se identificava com aquela criança, tal como se visse seu próprio reflexo de anos atrás.
         Percebendo que sua presença fora notada, correu para trás de um arbusto, e observou o que havia por vir. A mãe da criança da bola xadrez olhou com desconfiança pela janela, procurando pelo intruso. Mas ele decidiu voltar para a praça do outro lado da rua e continuar a observação.
           Observou que a suposta mãe havia entrado em um veículo e seguiu a estrada. Por que ela teria ido embora se sua família estava lá? Algumas poucas pessoas ainda presentes na rua o olhavam, com desconfiança. Ele chegara a menos de um dia, qual o motivo para tanto temor? Tempos antes de seu exílio era lhe oferecido ao menos uma xícara de chá e um pedaço de pão, mas agora era quase que totalmente ignorado.
            Sentindo o peso das pálpebras, decidiu dormir naquele velho banco, usando um livro que acabara de achar como travesseiro. O leria ao acordar. Provavelmente suas perguntas teriam respostas no dia seguinte.  
             Fora acordado pelo ruído dos carros e das pessoas que o estavam passando por ali em grande número. Olhou o título do livro que carregava. O Pequeno Príncipe, diziam as letras douradas na capa de couro. Só não compreendia por que aquele livro com ornamentos tão belos jazia naquela praça, exposto às mais diversas intempéries. Deveria ter um dono.
             Levantara os olhos, e viu a criança da bola xadrez novamente em seu encalço. Ela olhava atentamente para o livro que ele possuía em mãos, com repentino interesse. Aquele rapaz ofereceu-lhe o livro, mas a criança ignora e apenas se senta ao seu lado, levando-o a crer que fora intimado a ler em voz alta.
             Dois dias se passavam assim, com a criança trazendo-lhe porções de comida, e o rapaz lendo lhe capítulos do livro. Até que um dia a criança toma-lhe o livro emprestado, para fazer a cópia de algumas ilustrações, e no dia seguinte lhe traria de volta. Mas passou-se o dia da entrega e a criança não aparecera, e no segundo, sentindo falta do seu pequeno companheiro de solidão, dirigiu-se a janela da casa da criança da bola xadrez, e bateu levemente na borda, para chamar-la, mas a criança o olhara com um olhar triste, e logo mudara de cômodo. A mãe abriu a porta e com duras palavras, o expulsara do jardim.
          Ele voltou à praça e agora sem o velho livro e sem o seu pequeno companheiro, a solidão agora corroia sua alma como se fossem os ratos de sua prisão pessoal. Mal terminara sua reflexão, um grupo de amigos, alguns aparentemente ébrios, se alojou na praça. Um deles acendeu uma fogueira no centro da praça, e tirou um violão da bolsa que estava carregando, e começara a dedilhar uma canção. Todos ficaram em silêncio, em transe total, como se aquelas notas purificassem suas almas e as levassem para o outro mundo.
        Aquele rapaz não se importava se tivesse passados horas ou apenas alguns minutos, mas de alguma forma, o tempo fora generoso com sua frágil existência. Todos aqueles que estavam presentes, de alguma se pareciam com ele. Os momentos em si tinham mais importância.  Um dos erros de seu passado que ele haveria de consertar. O pouco tempo que passara observando as pessoas que iam e voltavam de suas casas, suas rotinas diárias e os seus olhares, aprendeu que o futuro é incerto e desconhece a justiça, não valia à pena sacrificar tudo por um filho tão ingrato. Mais algum tempo se passara, e todos aqueles amigos continuavam ali.
        De repente um estridente barulho de sirenes ecoa pela praça, e vários homens uniformizados rendem a todos que estavam ali, às vezes até mesmo agredindo alguns dos jovens. E aquele rapaz fora levado junto.
        Ele se perguntava qual seria o crime que eles teriam cometido. Enquanto olhava pelo vidro de trás do veiculo, percebeu vários rostos descontentes e olhares invejosos. Eram os habitantes da rua em que ele se alojara. Será que sua recente captura fora uma ordem dessas pessoas? Qual mal teria feito?
         Os veículos estacionaram em frente a um prédio, e os homens uniformizados levaram todos para uma sala, os revistaram e depois trancaram em uma cela, sem lhes dizer uma única palavra.
           O amanhecer chegou, e os homens tiraram aquele rapaz da sala junto com os outros, e cada um deles seguiu um caminho. Aquele rapaz agora se perguntara para onde iria. Decidiu retornar para a praça e de lá seguiria um novo rumo. Pelo caminho passava por várias bancas, e nos jornais, diversas notícias. Queria descobrir mais sobre o mundo em que estava. Parou para folhear um deles. Não podia acreditar que um mundo tão próspero se resumiria a isso. Logo o dono da banca o expulsara de lá, e ele decidiu seguir seu rumo. Também se desinteressara pelo manuscrito. Tudo que leu apenas o entristecera, como se o sal de suas lágrimas corroesse toda a felicidade da noite anterior.
         Finalmente chegou ao portão do bosque onde vivia. A tristeza o levara a enterrar tudo no fundo de sua mente e adormecer. Achou que dessa vez pudesse corrigir todos os seus erros. Mas aquele mundo já estava morto, e também haveria de enterrá-lo. Afinal, sempre seria o COVEIRO DO UNIVERSO.

FIM