sábado, 9 de setembro de 2017

Conto: O Flautista

O Flautista


Capital, dia 10 de setembro.
      Cheguei no centro cultural naquela tarde chuvosa. Dezenas de cartazes com diversificadas atrações a cada quarteirão. Luzes coloridas se estendiam das construções até o céu. Antes de descer, confirmei novamente o endereço em meu ingresso; aquele era o local exato.
      Número 118. Era um distinto clube de jazz, no cruzamento com a avenida mais movimentada do bairro. Por sorte, havia me vestido bem, como o de costume, pois toda a região era um belíssimo baile de debutantes, mas com as mais variadas gerações. Não era diferente no interior do clube. Cartazes do misterioso flautista dominavam o corredor de entrada… Tinha que ver com meus próprios olhos. Ouvir. Ter o máximo de certeza para concluir minha investigação.
       Sentei na primeira fila e a apresentação iria começar. As cortinas se abriram e logo ecoaram os primeiros acordes do órgão. Pouco a pouco entraram os outros instrumentos complementando a atmosfera do belo caos ordenado. As luzes baixaram e os holofotes se viraram para o canto. O Craam de la Creame da apresentação havia entrado em cena. Um silêncio se espalhou. Mesmo por baixo de toda a maquiagem e figurinos conceituais pude reconhecê-lo, e de fato era ele:Jaime Rocca, meu desaparecido amigo e aluno, companheiro nas artes plásticas subversivas. Tenho o procurado desde que recebi uma grotesca carta de sua autoria, solicitando minha ajuda.
     Perdera o contato com a sua família e muitos indagavam se teria morrido em atos de libertinagem, como se mostra o senso comum a respeito de nossa classe, mas eu o conhecia bem e sempre fora devoto aos valores de sua família, embora nutrisse grande paixão pela música sempre fora mediano, mas o bastante para tornar alegres os fins de noite da pequena vila onde morava. O que só torna mais curioso ele ter realizado seu sonho de tocar no mais distinto ambiente junto com os melhores músicos, sendo aclamado pela pela mais exigente plateia, tudo em questão de meses.
      Jaime de fato se tornara um grande músico. Sua flauta transmitia um som transcendental, fornecendo uma verdadeira viagem alucinógena, com a mais rica gama de sensações. O público, outrora prisioneiro das formalidades mentais e físicas, vibrava e urrava como uma insana alcateia, se contorcia em movimentos sincronizados ao mesmo tempo disformes, acompanhando a melodia minimalista, tal como tomados pela praga de São Vito, surto de dança coletiva, histeria que acometeu centenas de pessoas séculos atrás.
      Ao fim da apresentação, enquanto toda a plateia caia exausta pelo salão, pude chegar mais próximo do palco e prestar uma ligeira atenção na misteriosa flauta de meu antigo aluno. Cuidadosamente ornamentada com traços nativos, com várias imagens de criaturas híbridas e vegetações exóticas. Era bela ao mesmo tempo ameaçadora, como se tivesse sido concebida junto à própria civilização. Minha observação durara pouco pois logo todos os músicos recolheram-se ao camarim.   
      Jaime se recolhera do palco por ultimo, após limpar e guardar cuidadosamente sua flauta e trancá-la como um tesouro de pirata em uma caixa. Passou a conversar com os jornalistas e críticos presentes no local. Após uma longa fila, consegui me encontrar com ele no camarim após todos irem embora. Finalmente pude olhar bem em seu rosto, pois sempre acreditei que os olhos era a janela da alma. Mas aqueles não eram mais os olhos de meu aluno. Pareciam olhos de cobra, tal como se tivesse atingidos por trissomia. Não trocamos muitas palavras e ele se mostrara indiferente a minhas informações sobre a preocupação de sua família.
       Não vendo muitas razões para permanecer naquele local após a fria e silenciosa recepção de meu aluno, telefonei para as autoridades de El Quebrados informando o paradeiro do desaparecido Jaime Rocca. Concluído o trabalho, coloquei me à varanda do clube para tomar um vinho e observar a lua.  Pensativo, pus me a ler com maior atenção a  primeira página do diário anexado a carta escrita por Jaime:
     
El Quebrados, 15 de Novembro.
        Mais um dia improdutivo. A crise dos grãos nos atingiu com força esse ano. Mesmo trabalhando até muito mais tarde não consegui mais que míseros 10%.
Estando desolado ou desorientado, ou ambos, não reparei que havia tomado um caminho diferente para casa, na rua da casa do velho flautista, nos cortiços, cujas melodias ecoavam por vários quarteirões.
     Curiosamente, fazia um certo certo tempo que não ouvia ele tocar então passei em frente a sua varanda, mas também não havia ninguém. Ao seguir reto, ouço uma voz decrépita:
 -  Mil perdões por importuná-lo, meu caro jovem, mas poderias ceder-me um pouco d'água de vosso cantil? Como podes ver, já se encontra tarde para adquiri-la no armazém, e também estou incapacitado de ir até poço- contou mostrando sua perna retorcida. Tirei meu cantil e enchi-lhe o copo.
   Já passava por aquelas bandas há algum tempo, mas nunca me senti encorajado a dirigir-lhe a palavra, era como olhar um reflexo almejado, mas que se encontra muito distante do seu eu atual, quase utópico.
    Mesma admiração já não cabia ao seu físico. Roupas surradas, uma perna retorcida, talvez por uma fratura não tratada, uma barba escura e mal distribuída que contrastava com seus ralos e ao mesmo tempo longos cabelos brancos, e um chapéu negro que cobria metade de seu rosto.
         Quando ele virou o copo, pude ver seu rosto. Mesmo o abatimento pela idade estar inegavelmente impresso em seu rosto, ainda demonstrava uma inefável ambição. De fato, a vida humana é muito curta para realizar tudo que nós almejamos, a espécie mais ambiciosa e egoísta, talvez. Mas nada havia me chamado mais atenção do que aqueles olhos.
        -  Muito obrigado, jovem - disse-me devolvendo o cantil - Nos doamos muito em prol de pouco retorno nessa curta vida.
        - Disponha, senhor… Para mim não é mal nenhum ajudar alguém que se encontra necessitado, aliás gostava muito de ouvi-lo tocar quando passava aqui por perto. Era algo que me inspirava de certa forma.
       - Os sinos tocaram jovem, o tempo é um rei cruel. Meu fôlego, já não é o mesmo. Também pertence ao ramo da música, meu rapaz?
        - Ah sim, mas perto de uma lenda como o senhor, não passo de um mero aprendiz.
        - Tudo a seu tempo, jovem. Instrumentos de um artista tendem a guardar a alma de seus mestres de alguma forma. Nós de fato, nos tornamos imortais ao entregar nosso alma ao ofício.
      - Muito interessante, tenho conversas semelhantes com meu professor. Infelizmente devo me retirar, as coisas não andam bem na minha casa, mas agradeço pela conversa. Talvez amanhã eu passe aqui com novos assuntos.
      - Espere, jovem!!
      - Mais algum desejo, senhor? 
      - Adquiri grande apreço por sua personalidade, e reconheço um imenso potencial em você, e agradecendo pela água e pela atenção, lhe ofereço minha velha flauta.
      - Não posso aceitar, senhor, humildemente devo recusar isso é muito para alguém como eu!
      - Aceite, jovem. Devido a meu estado físico, não consigo mais tocá-la por muito tempo. Isso é o melhor que posso fazer para passar adiante meu legado. Sei que ela é antiga, mas está em excelente estado.
       - Já que insiste, senhor, eu agradeço. Vou me esforçar para fazer jus a vocês.
        Segui meu caminho, mas depois disso nunca mais vira o velho flautista. E aquele breve encontro, mudou para sempre nossos destinos. E nunca mais deixei de sonhar com aqueles olhos do velhos flautista cheios de ambição. Aqueles olhos. OLHOS DE COBRA.


Fim

                                                  Luiz Santos